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terça-feira, 29 de setembro de 2020

Deidade


não há nada que eu não saiba
nesta terra de ninguém
tenho opinião sobre tudo
nunca estou certa, porém

Olimpo feito de @
no panteão do Facebook
entre memes e textão
cada um, por si, que lute

na conta cadastrada
acompanho o newsletter
mantenho-me sempre atualizada
mergulhando em informação e éter

na rede da teia de Aracne
sou presa em um login
não há saída off-line
não posso desconectar de mim

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Cruzamento

no outro lado da calçada
vejo a faixa
de pedestre
e pra onde vou?
nesta linha de chegada
o que sou
não se encaixa
extraterrestre
meu afeto não te alcançou

terça-feira, 14 de julho de 2020

Delonga


taciturno
o controle de Saturno
se põe sobre a gente
e eu que sempre fui paciente
percebo a pressa
emergência submersa
que se tatua
na pele
nos olhares
nas mensagens
na urgência de ser tua

nos desencontros do destino
[esse nosso adversário]
esbarrei em ti tantas vezes
e acenei para seguir caminho
em outro itinerário
mas permanecia sempre olhando pra trás
e para o que eu havia deixado
[um amor que nunca se liquefaz]

eis minha sina
mística fase:
os dias que nos separam agora
são esses intervalos do quase
que tecem junto com a aurora
o senão
que é a certeza
do teu sim

não mais tardo:
em breve
chegarás como uma prece
pois eu, que sou filha do Tempo,
te aguardo
como quem espera um milagre

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Cenário


quero a Companhia das Letras
quero letras sem companhia

quero ausência de hierarquia
quero legitimação

quero blog
quero livro

quero virtual
quero físico

quero o marginal
deixando de ser periférico

quero zine
se tornando cânone

quero fanfic
na FLIP

quero sarau
quero bienal

quero autonomia
quero edital

quero independência
quero prêmio

quero o underground
ocupando o mainstream

quero slam
mobilizando multidões

quero um infinito leque
de batalhas de rap

quero escritora
ditando regras à editora

quero troca
quero mercado

quero saída
para essa aporia

utopia
sem degrau
múltiplos passos
em patamar igual
nos diversos espaços
do horizonte plural
que é a literatura

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Ataranto

possuo estas mãos
um tanto quanto desajeitadas
que sequer sabem dar conta
das tarefas domésticas diárias
lavo a louça respingando em toda a cozinha
demoro duas horas só para cortar os temperos
minha motricidade — nada fina 

[não por falta de esmero
apresenta uma caligrafia apenas legível
o suficiente para impor ao quadro branco
[e às turmas
uma letra minimamente entendível
estas mãos te tinham:
com semelhante ausência de habilidade
me atrapalhava em desabotoar teu sutiã
e tentar amar-te era sinônimo de risadas
das quais agora sou órfã
então eu me concentrava
[desengonçada
em trançar entre os dedos
cada centímetro de teus cabelos
e esperando diante da porta
me permitia ser convidada
pra dentro de tua morada
e apreciava tua pequena morte
antes de ires embora
estas mesmas mãos
hoje encontram-se vazias
minha pele? embrutecida…
e contrariando o ditado popular
não há nenhum pássaro a voar

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Falta de Bom Censo



“gente morre todo dia
mas agora tudo é covid
racismo
trans e homofobia
ninguém morre mais
de morte morrida”

a troco de nada
tantas estatísticas
não são números
são vidas
APAGADAS
nomes
não-registrados
no abecedário
do negacionismo
reacionário

não apenas cêpêefes
corações pulsantes
de sonhos
com o peito arfante
sem ar
jamais serão esquecidos por nós
ou afogados
nesse mar
de desespero
e lodo
onde estamos todos
tentando nadar

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Doppelgänger



recentemente
a NASA começou
a considerar
a possibilidade
de um (anti)universo
paralelo
existente
essa descoberta
— agora científica 
eu já sabia
em uma dimensão empírica
sempre senti
que em algum lugar
a gente ainda se tinha

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Inertia

não há voo
nem pouso
nem mergulho
nem queda
ao amar

há o planar
que flutua
paira
sustenta-se
no ar

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Embaraço


Ser lésbica nunca é confortável.
É até aceitável, no silêncio do armário da cidadã que não levanta bandeiras e recolhe impostos.
Há sempre um incômodo que gravita em torno, que faz terceiros se ajeitarem na cadeira e estalarem os pescoços.
Algo fora do lugar. Algo inconveniente e embaraçoso, escondido em um sorriso amistoso.
Por causa dessa atmosfera, cheguei a encolher e minguar todo o meu sem-fim.

-
No primeiro encontro, quero beijá-la. Mas nunca a beijo logo de cara. Nunca sem averiguar previamente e olhar para os lados, à espera que a rua fique vazia e escura. E estar com ela é meu maior ato de bravura. Por isso que quando vamos para o quarto, as luzes ficam acesas, pois é quando podemos nos ver com clareza.
No segundo encontro, observo os mendigos da praça. Não há ameaça. Posso beijá-la mais uma vez no intervalo da troca de turno entre os guardas. E sigo tocando-lhe as coxas nos interstícios sem pedestres e transeuntes. No final do dia, juras e abajures.
No terceiro encontro, aguardamos o caminhão do lixo passar. Evitamos circular por entre os canteiros de obras. Na frente dos armazéns e bares, impropérios. Mas andar por terrenos baldios também é ainda mais perigoso. E seguimos intercalando por grilos taciturnos e cantadas baratas, de acordo com o movimento da cidade.
Jamais fico sabendo se haverá um próximo rendez-vous, ou se será o último. Este é o critério para tê-la: o mistério.

-
Minhas mãos suam. De excitação. E medo. Excitação por estar de mãos dadas. Medo por estar de mãos dadas... com ela.
Se tenho vergonha de ser lésbica? Não. Entretanto, não desejo que ela sofra consequências por me querer de volta. E nós nos conhecemos tão bem, pois o amor entre mulheres estabelece uma comunicação só pelo olhar: carregamos juntas o suor das mãos, o suor de excitação e medo. E esse era o nosso segredo.
Ou nós achávamos que era.
-
Esse mesmo olhar, essas mãos suadas, que eram confidência recíproca, também foram confissão. Quanto mais calávamos, mais revelávamos. Através da troca de soslaios clandestinos no churrasco da família, a quem fui apresentada como colega da faculdade. No supermercado, quando mantínhamos uma distância regulamentar de alguns passos. No trabalho, quando ia deixá-la uma esquina antes. Durante os durantes, deslizes e pistas de um crime inexistente. E então, quando a mudez propositada ficou insuportavelmente audível apesar de nossas estratégias de mascaramento da verdade, vieram interrogatórios e julgamentos e toda a lonjura que sempre nos impusemos se tornou afastamento compulsório. O tempo perdido em encobrir para todos e descobrir entre cobertas e lençóis foi em vão. Desperdicei a plenitude em uma esperança de proteção, no intuito de poupá-la. Todavia, não há escudo para o alvo.
-
Não me importo com o que pensam de mim. Mas evitei vê-la com dedos apontados para si. Só que ser lésbica nunca é confortável.
-
A zona de conforto é uma falácia com prazo de validade, sobrevida em felicidade-de-pequeno-porte. Uma zona de conforto permanente é acompanhada de uma sentença de morte.
Basta. Comecei a ser bastante.
Agora vivo sendo inoportuna.
Pedra no sapato.
Sapatão.

-

sábado, 11 de abril de 2020

A Posteriori


horas de videochamada
Fortnite e joguinhos de celular
dias de procrastinação
[e fazer-nada
playlists de meditação
webflerte e nude
(“oi bb, to on-line, me ilude”)

quando isso tudo acabar
qual será a primeira coisa real
que você fará?

quando isso tudo tiver fim
qual será o primeiro lugar
que você passeará
além do próprio jardim?

vou sair para pedalar
encomendar um cento de salgado
comer com as minhas amigas
tomar o litrão mais barato
cantar no karaokê
falar mal do governo
comentar a final do BBB
[na beira da calçada
pegar filas
rebolar a raba
e usufruir da vida

quero deitar no teu peito
e abusar do direito
de ir e vir
que eu sequer reconhecia...
talvez até sorrir
e agradecer ao antes
que já era o bastante
porém eu não sabia.

sábado, 4 de abril de 2020

Desenlace


o relacionamento tóxico
não começa com lágrimas
se inicia com sorrisos
[carinha boba diante do Whatsapp
e com “você é linda”, mas...

quando vai voltar pra casa?
to ansiosa pra te ter na nossa caminha, não demora s2
não se atrasa
tá bom, já to indo embora

o relacionamento tóxico
não começa com proibição
se inicia com abraços
e com “você que sabe, mozão”... 
depois avança para o pisar em ovos

você tem razão...
a culpa é minha mesmo...
me desculpa, então...
não vou mais fazer de novo...

o relacionamento tóxico
não começa com gaslighting
se inicia com controle de conteúdo
e com stalkear site

por que você curtiu a foto de Beltrana?
de onde você conhece ela?
quem é Ana?
[emoji com raiva
o que significa aquele comentário no post da Fulana de Tal?
vamos fazer um perfil de casal?

o relacionamento tóxico
não começa com tapas
se inicia com caras de cu injustificadas
e com dêerres intermináveis

você não se importa
você é insensível
to falando com uma porta
você é uma pessoa horrível

o relacionamento tóxico
não começa com dependência afetiva
se inicia com “não sei viver sem você”! :*
e com “você não corresponde às minhas expectativas”!

eu vou me matar se você me deixar
entendo, sou impossível de lidar
vou amadurecer no meu próprio ritmo
é assim mesmo, ninguém quer viver com uma pessoa doente
eu prometo que vai ser diferente

o relacionamento tóxico
não começa com termina-volta
[intermitente
se inicia com “me dá a senha do teu Instagram
e da tua conta corrente”

o relacionamento tóxico
não mostra a bolha
redoma-câmara-de-gás
não se cura da noite pro dia
requer não olhar pra trás
rasgar o véu
e enfrentar anos de terapia.

terça-feira, 31 de março de 2020

Bazar




me desapego do passado
como quem se despe de horas gastas
[pelas traças
não passo o passado a ferro
deixo amarrotado
penduro entre cabides
[e araras
uma roupa para vender no brechó
[junto com as coisas mais baratas.

terça-feira, 24 de março de 2020

Ostracismo

este tempo 
de quarentena
de emparedamento
solidão que aliena
no apartamento
assistindo à mesma cena
horizonte de cimento
este tempo
[anormal
de isolamento
dividido entre rede social
catálogos de entretenimento
desejo sexual
e abafamento
este tempo
[viral
encurralado
de UNO, dominó e baralho
já não é igual
à vida real
que nos amarrota em qualquer lado?
box do banheiro
cozinha americana
ônibus
metrô
escritório
home office
pub

boate
hospital
motel
órgão público
restaurante
igreja
cinema
escola
a própria mente
tudo é quadrado.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Exórdio

a primeira vez que te vi
foi o Big Bang
o fogo, a roda
olhei os dinossauros em fila
e os mamutes com suas trombas
saudavam tua chegada

na primeira vez que sorriste
pangeia se fragmentou
pirâmides eu levantei
e em uma escrita ainda não inventada
já te fazia poemas de amor

na primeira vez que falaste comigo
caiu Constantinopla
Vesúvio eructou
Jesus chorou
[na cruz
e Da Vinci pintou

na primeira vez que me beijaste
estava na arquibancada
das Bacantes
aplaudi Shakespeare
e assisti Méliès
[com Le voyage dans la Lune

e quando me deixaste
fui à câmara de gás
à queda do muro de Berlim
servi no Vietnã
fui ser catequizada pelos jesuítas
colonizada em capitanias

então todas as minhas histórias
foram esquecidas, amada
na primeira vez que me vi
[enfim
não havia descoberto nada

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Cumulonimbus





nunca sonhei com véu e grinalda
não creio em cara-metade
desejo um céu esmeralda
onde eu seja tempestade

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Microscópica

Enxuga a mão no guardanapo da cozinha antes de encostar em mim.
Eu sou o resto de comida molhada na pia:
restos de alface e arroz em meu camarim
prestes a ser inundado de água fria.
Cubra todas as frutas e o queijo.
Eu sou a mosca que se deleita inclusive com os restos da pia.
Esvoaçante e zumbindo pouso com um delicado beijo
plantando larvas de zombaria.
Eu sou as bactérias da geladeira:
um botulismo, um h pylori
Não tenho cura, mesmo que se queira,
nem com overdose de antibióticos hardcore.
Eu sou esse farelo de bolacha do jantar
que denuncia a falta de faxina no porcelanato
e talvez esse papel de manchar 
seja minha única serventia de fato.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Correnteza


viver é líquido
não como Bauman teoriza
não me refiro à sociedade de consumo
à modernidade
e todo esse compêndio de pesquisa 

falo do fluido primeiro
casulo amniótico
e das tetas
colosso-colostro
crime nutricional
de experimentar Coca-Cola

cito as brincadeiras
pega-pega na chuva
penso na sentença feminina
menarca à menopausa
na descoberta do corpo
suor
saliva
lubrificação
sêmen
enfatizo o amor não correspondido
sal dos olhos que acompanha
o amor correspondido
que sempre acaba também
[mas a lágrima é inundação infinita]

e então há a constatação do desdém
o Rivotril
a Budweiser
a heroína
intercalada com champanhes
e brindes de fim de ano

agarra-se a purificação através da fé
água benta
e finais de semana
de fugas para igarapés

e encaminha-se ao pus
ao mijo senil
fraldas da demência
soro fisiológico
morfina
e Tramal

daí tudo termina
em café
seja da manhã
seja dos velórios da família