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terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Correnteza


viver é líquido
não como Bauman teoriza
não me refiro à sociedade de consumo
à modernidade
e todo esse compêndio de pesquisa 

falo do fluido primeiro
casulo amniótico
e das tetas
colosso-colostro
crime nutricional
de experimentar Coca-Cola

cito as brincadeiras
pega-pega na chuva
penso na sentença feminina
menarca à menopausa
na descoberta do corpo
suor
saliva
lubrificação
sêmen
enfatizo o amor não correspondido
sal dos olhos que acompanha
o amor correspondido
que sempre acaba também
[mas a lágrima é inundação infinita]

e então há a constatação do desdém
o Rivotril
a Budweiser
a heroína
intercalada com champanhes
e brindes de fim de ano

agarra-se a purificação através da fé
água benta
e finais de semana
de fugas para igarapés

e encaminha-se ao pus
ao mijo senil
fraldas da demência
soro fisiológico
morfina
e Tramal

daí tudo termina
em café
seja da manhã
seja dos velórios da família

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Aspirações de um Futuro Qualquer

Imagem de architecture, modern, and aesthetically pleasing


a esmola que peço
é pouco mais do que um amanhecer
nem é a última fatia do bolo
tampouco a venda de um best-seller
a felicidade que quero
é apenas a nota pra passar sem puxar saco
seminário em que os membros do grupo não
[faltem à aula
roupas sem traças a abrir buracos
a vida que espero
é sem fundo preto na panela inox
em que o gás não termine no fim do mês
ou uma fila curta pra tirar xerox
a utopia que considero
é de ter mais férias que gastos
passear sem parar em pedágios
e desfrutar sem deixar rastros

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Avesso



com os pés fincados no céu
desenho nossos nomes nas nuvens-areia
que se apagam com a vinda da chuva
e escoam em poças de lua cheia

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Novos Bares, Velhos Ares



Resultado de imagem para poste luzes amarelas

As luzes de mercúrio dos postes da praça Zagury e do Trapiche me lembram semáforos-de-entrada-e-saída-de-veículos. A cor que representa Macapá em minhas lembranças mais longínquas é esse amarelo.

A rotatividade das opções de lazer também é dinâmica e constante. Na minha época (que já passou), o point era o Liverpool. O Francês também teve dias de glória. Euda. Underground. Nego. Jaime como plano B. 220. Hoje Vila e Treta. E antes disso tudo, havia o Círculo Militar.

De quinta a domingo os jovens mais jovens que eu saem em procissão pelas diferentes fachadas dos estabelecimentos que abrem, trocam de endereço, fecham, reabrem com o mesmo dono e outro nome, reabrem com o mesmo nome e outro dono. Táxi. Mototáxi. Uber. 99. YetGo. Carona. Busão para voltar às 22h. Transportes para abandonar o apolíneo e abraçar o dionisíaco.

Novos lugares. Antigos rostos. Arcaicas alcunhas. Imutáveis rótulos.

O maconheiro. A cheiradora de pó. O cara de 30 anos que não terminou nenhuma faculdade e é sustentado pelos pais. A esquerdista do PSTU que brigou com a galera do PSOL. O militante que não fala com a esquerdista do PSTU por ser do PSOL. A corrupta que desviou dinheiro quando estava no cargo. O estuprador-macho-escroto. O macho-escroto-que-não-é-estuprador-mas-é-abusivo. A fotógrafa que dá calote. O tarólogo. A mística da yoga. O músico ruim. A acadêmica de Direito que ganhou um HB20 ao passar no Enem (porque mereceu). O vocalista da banda que vai tocar e pega menores de idade.

Não sei quantas etiquetas existem no rodapé da minha vida, placas invisíveis que são lidas por terceiros. Certamente hashtag sapatão-escrota faz parte da lista.

Quanto tempo demora para apagar uma imagem? E desconstrui-la? E reconstruí-la?
Para destruí-la, basta uma noite, uma comanda, um vacilo. E ele jamais será perdoado.

Quantos bares abrirão e fecharão até aceitarmos que é possível ser mais do que um adjetivo?
Para cada DJ que sobe no palco, uma playlist de acusações.

Quantas músicas de karaokê serão cantadas para de fato as masculinidades tóxicas se desfazerem?
Para desintoxicar, só uma droga ainda não inventada em laboratório.

Quantas denúncias existirão para interromper a prática de gente-que-não-aprende?
Para parar, não parar de apontar nunca permite pensar (?)

Quantos copos se partirão pra se somar aos cacos de nossas honras?
Para cortar os dedos indicadores alheios, talvez amputar os próprios braços.

Entre um litrão e outro, o garçom vem me atender. Olho para ele e vagamente recordo:
Esse não é o doido que gostava de mijar nas garotas durante o sexo há uns sete anos? Será que ele ainda curte fazer isso até hoje com a esposa e as filhas?

domingo, 17 de novembro de 2019

Intersecções

Imagem de aesthetic, clowns, and creepy


tenho milhões de anos
milhões de máscaras
que se sobrepõem
se (des)encontram
e batalham

a máscara branca
a máscara lésbica
a máscara mulher
a máscara andrógina
a máscara assalariada

nessa fantasia-costume
minhas dores se entrelaçam
meus lugares se confundem
se fundem
e se caçam

ao mesmo tempo que enfrento
a injustiça atroz
quando denuncio a sociedade machista
dentro
luto contra a existência
de um possível resquício racista
e algoz
[às vezes me calo com receio
de estar silenciando uma divergente voz]

enquanto sofro preconceito
pela minha sexualidade
minha classe atravessa a rua
ao ver alguém “suspeito”
à luz do dia
e meus conhecidos consomem vítimas nuas
em sites de pornografia

será que os demais também carregam essa culpa?
será que são conscientes de suas máscaras?
parece mais fácil existir
sem o peso da história sobre os ombros
sem reviver os escombros
do mal que fizemos à humanidade.

saber que existe mais
é quase-liberdade
quem roubou o ouro
quem colonizou o outro
ciente de sua posição
de sempre estar um passo à frente
entende

que a máscara lésbica
sofre homofobia
entretanto, a máscara branca
alcançou escolaridade
conseguiu um diploma
e um pouco de espaço na Academia
que a máscara mulher
carrega um diploma menos valorizado
que o diploma de um homem
[mesmo curso
diferentes percursos
ao longo da graduação]
e que a máscara andrógina
não performa a devida feminilidade esperada
ainda assim tem menos dedos apontados para si
do que qualquer travesti
e graças à máscara assalariada
tem estabilidade para vestir
o que preferir
sem medo de demissão

caem as máscaras adiante
ora dominada
ora dominante

cai a máscara duradoura
ora oprimida
ora opressora

que fique aberto o ferimento;
talvez as máscaras não estejam em guerra
e sim em um processo
de reconhecimento
sobre a desigualdade de acesso
onde tudo isso está em jogo...
o começo de uma nova era:
o caminho para cessar-fogo.