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segunda-feira, 27 de abril de 2020

Inertia

não há voo
nem pouso
nem mergulho
nem queda
ao amar

há o planar
que flutua
paira
sustenta-se
no ar

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Embaraço


Ser lésbica nunca é confortável.
É até aceitável, no silêncio do armário da cidadã que não levanta bandeiras e recolhe impostos.
Há sempre um incômodo que gravita em torno, que faz terceiros se ajeitarem na cadeira e estalarem os pescoços.
Algo fora do lugar. Algo inconveniente e embaraçoso, escondido em um sorriso amistoso.
Por causa dessa atmosfera, cheguei a encolher e minguar todo o meu sem-fim.

-
No primeiro encontro, quero beijá-la. Mas nunca a beijo logo de cara. Nunca sem averiguar previamente e olhar para os lados, à espera que a rua fique vazia e escura. E estar com ela é meu maior ato de bravura. Por isso que quando vamos para o quarto, as luzes ficam acesas, pois é quando podemos nos ver com clareza.
No segundo encontro, observo os mendigos da praça. Não há ameaça. Posso beijá-la mais uma vez no intervalo da troca de turno entre os guardas. E sigo tocando-lhe as coxas nos interstícios sem pedestres e transeuntes. No final do dia, juras e abajures.
No terceiro encontro, aguardamos o caminhão do lixo passar. Evitamos circular por entre os canteiros de obras. Na frente dos armazéns e bares, impropérios. Mas andar por terrenos baldios também é ainda mais perigoso. E seguimos intercalando por grilos taciturnos e cantadas baratas, de acordo com o movimento da cidade.
Jamais fico sabendo se haverá um próximo rendez-vous, ou se será o último. Este é o critério para tê-la: o mistério.

-
Minhas mãos suam. De excitação. E medo. Excitação por estar de mãos dadas. Medo por estar de mãos dadas... com ela.
Se tenho vergonha de ser lésbica? Não. Entretanto, não desejo que ela sofra consequências por me querer de volta. E nós nos conhecemos tão bem, pois o amor entre mulheres estabelece uma comunicação só pelo olhar: carregamos juntas o suor das mãos, o suor de excitação e medo. E esse era o nosso segredo.
Ou nós achávamos que era.
-
Esse mesmo olhar, essas mãos suadas, que eram confidência recíproca, também foram confissão. Quanto mais calávamos, mais revelávamos. Através da troca de soslaios clandestinos no churrasco da família, a quem fui apresentada como colega da faculdade. No supermercado, quando mantínhamos uma distância regulamentar de alguns passos. No trabalho, quando ia deixá-la uma esquina antes. Durante os durantes, deslizes e pistas de um crime inexistente. E então, quando a mudez propositada ficou insuportavelmente audível apesar de nossas estratégias de mascaramento da verdade, vieram interrogatórios e julgamentos e toda a lonjura que sempre nos impusemos se tornou afastamento compulsório. O tempo perdido em encobrir para todos e descobrir entre cobertas e lençóis foi em vão. Desperdicei a plenitude em uma esperança de proteção, no intuito de poupá-la. Todavia, não há escudo para o alvo.
-
Não me importo com o que pensam de mim. Mas evitei vê-la com dedos apontados para si. Só que ser lésbica nunca é confortável.
-
A zona de conforto é uma falácia com prazo de validade, sobrevida em felicidade-de-pequeno-porte. Uma zona de conforto permanente é acompanhada de uma sentença de morte.
Basta. Comecei a ser bastante.
Agora vivo sendo inoportuna.
Pedra no sapato.
Sapatão.

-

sábado, 11 de abril de 2020

A Posteriori


horas de videochamada
Fortnite e joguinhos de celular
dias de procrastinação
[e fazer-nada
playlists de meditação
webflerte e nude
(“oi bb, to on-line, me ilude”)

quando isso tudo acabar
qual será a primeira coisa real
que você fará?

quando isso tudo tiver fim
qual será o primeiro lugar
que você passeará
além do próprio jardim?

vou sair para pedalar
encomendar um cento de salgado
comer com as minhas amigas
tomar o litrão mais barato
cantar no karaokê
falar mal do governo
comentar a final do BBB
[na beira da calçada
pegar filas
rebolar a raba
e usufruir da vida

quero deitar no teu peito
e abusar do direito
de ir e vir
que eu sequer reconhecia...
talvez até sorrir
e agradecer ao antes
que já era o bastante
porém eu não sabia.

sábado, 4 de abril de 2020

Desenlace


o relacionamento tóxico
não começa com lágrimas
se inicia com sorrisos
[carinha boba diante do Whatsapp
e com “você é linda”, mas...

quando vai voltar pra casa?
to ansiosa pra te ter na nossa caminha, não demora s2
não se atrasa
tá bom, já to indo embora

o relacionamento tóxico
não começa com proibição
se inicia com abraços
e com “você que sabe, mozão”... 
depois avança para o pisar em ovos

você tem razão...
a culpa é minha mesmo...
me desculpa, então...
não vou mais fazer de novo...

o relacionamento tóxico
não começa com gaslighting
se inicia com controle de conteúdo
e com stalkear site

por que você curtiu a foto de Beltrana?
de onde você conhece ela?
quem é Ana?
[emoji com raiva
o que significa aquele comentário no post da Fulana de Tal?
vamos fazer um perfil de casal?

o relacionamento tóxico
não começa com tapas
se inicia com caras de cu injustificadas
e com dêerres intermináveis

você não se importa
você é insensível
to falando com uma porta
você é uma pessoa horrível

o relacionamento tóxico
não começa com dependência afetiva
se inicia com “não sei viver sem você”! :*
e com “você não corresponde às minhas expectativas”!

eu vou me matar se você me deixar
entendo, sou impossível de lidar
vou amadurecer no meu próprio ritmo
é assim mesmo, ninguém quer viver com uma pessoa doente
eu prometo que vai ser diferente

o relacionamento tóxico
não começa com termina-volta
[intermitente
se inicia com “me dá a senha do teu Instagram
e da tua conta corrente”

o relacionamento tóxico
não mostra a bolha
redoma-câmara-de-gás
não se cura da noite pro dia
requer não olhar pra trás
rasgar o véu
e enfrentar anos de terapia.