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domingo, 3 de agosto de 2014

CPF


o homem casto
carrega consigo
todos os desvios.

o homem desviado
carrega consigo
toda a castidade.

o homem puro
que não toma banho
é sujo.

o homem sujo
que toma banho
é limpo.

o homem que se veste
de mulher
pra mim
é mulher
porque é isso
que quer.
porque sente
que é isso que é.

mas pros outros, aquele homem
ainda é homem,
e sempre vai ser
só porque nasceu homem
e assim deve se manter até morrer.

não importa a falta de ética,
desde que não se contraponha à genética.
a natureza não tem que ser exata,
nossa natureza é a gente que acha.

identidade não é sinônimo de rg!
nosso registro no mundo
não deve ser uma sequência de números
que só servem para jogar no spc
enquanto cada um se ensardinha
no vagão do metrô
e no fim da linha
implora por um pouco de amor.

AQUI NEM TEM METRÔ!

a luta é por uma cadeira vazia
no ônibus de meio-dia.

fodam-se os cromossomos!
quem, além de nós mesmos,
pode ditar o que somos?

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Eva(cu)ar


Recentemente assisti a uma entrevista:
Nela, com um ar que lhe é peculiar,
Dercy Gonçalves enumerava, em uma lista,
Que as melhores coisas são: comer, dormir e cagar.

Ora, a respeito de tal testemunho
Refleti e cheguei à conclusão
De que sobre tal opinião e por seu cunho,
A senhora estava coberta de razão

Principalmente no que se refere ao ato
De expelir do organismo
O barro que maltrata o olfato:
Uma espécie de exorcismo.

Aquilo que não possui serventia
É logo expulso do corpo.
Defecar é pitoresca alegria
E um legítimo aborto;

A maneira mais fácil de se libertar
Daquilo que já não faz mais sentido.
Tudo que está, em vão, ocupando lugar,
Deveria ser logo banido.

Mas o ser humano tem uma dificuldade tremenda
De abandonar de vez o que já não serve,
Talvez por tradição, mito ou lenda,
O que é pretérito ainda se conserve.

Se cagam brancos, cagam pretos,
É porque bosta não se armazena.
Emendas são piores que sonetos,
Pois o passado também aliena.

A sábia Dercy deu o bolo e, bem acima, a cereja:
Mesmo que doa ou arda a despedida,
Por mais complicado que seja,
Livre-se das merdas de sua vida.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Marabaião

Vim embora do sertão,
Onde faz uma seca danada,
Mas não há seca pior
Que a ausência da amada...

Lá deixei meu coração,
Não aguentei o clima forte
Mas a minha solidão
Agravou-se sem meu norte.

Sem meu norte eu vim pro Norte,
Que fica mais pro Oeste,
Pouco antes do Oiapoque,
Dei adeus para o Nordeste.

Nessa saga viajei milhas
Em busca de redenção,
Quando cheguei, mil maravilhas:
Era água em imensidão.

Meu Deus do céu, que rio bonito
Outro assim eu nunca vi...
Achava que era apenas um mito
Que a gente ouve por aí.

Fixei-me nesta terra
Acostumei com o calor,
Mas ainda era uma guerra
Sobreviver sem um amor.

Pensava no meu Nordeste,
A saudade era um açoite,
Pra completar, o meu agreste
Era dormir sozinha à noite.

Chegou a Páscoa em um domingo,
Começou um novo ciclo:
Fui pro bairro do Laguinho
Na missa de São Benedito...

Nos dias subsequentes,
Muita festa e gengibirra,
Marabaixo, cachaça quente
Pra despertar a alegria.

Eu só na base do mé
Avistei uma saia rodada
E confesso que sou ré
Por olhar a moça errada.

A timidez tomou de conta
Porque eu não sabia bailar
E considero uma afronta
Se inxerir sem nem dançar.

Com umas doses na cabeça,
Consegui me soltar devagar,
Pensei: “antes que amanheça
Essa dama vou abordar”.

Já um pouco alterada,
Aproximei-me da menina.
Ela estava acompanhada,
Seu nome era Catarina.

Catarina namorava
Um brucutu metido a besta
Que chiava e não gostava
Que ela dançasse em qualquer festa.

Cada vez que ela rodava,
O mundo se rendia a seus pés
E o ogro com a cara amarrada
A levava embora de revés.

No fim do ciclo os dois brigaram
E ele quis bater em Catarina
Os donos da casa apartaram
Quase às 6 da matina.

Ofereci uma carona
Quando o porre desapareceu.
Não pode vir nunca à tona
Aquilo que se sucedeu.

Hoje aqui eu já me encaixo
E fiquei com minha nega.
Em noites de Marabaixo
A gente gira e se aconchega.

Sinto falta do Nordeste
Mas o Norte virou paixão:
No tambor que se aquece
Entoo mais um ladrão.

Os triângulos e as sanfonas
Deram lugar ao batuque
Enquanto o Amazonas
Pororoca sem ter truques.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Matéria-Prima


Um químico explicaria
Que o ser humano é composição séria:
Somos feitos, basicamente, de oxigênio e carbono.
Um poeta como Shakespeare já diria
Que o ser humano possui outra matéria:
Somos feitos, essencialmente, de sonhos.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Infanticídio


Quando eu era pequena,
Certa vez, vi uma cena
Em um desenho que eu gostava.
Quando a geladeira fechava,
Lá ia um pinguim e apagava a lâmpada.
Eu encasquetei com aquilo por implicância
E comecei a abrir e fechar a geladeira
(Curiosidade ou brincadeira),
Sonhando desvendar o grande mistério
E quando solucionei, achei um despautério.
A partir dessa descoberta,
Veio a realidade dura
Através de uma fresta, uma porta entreaberta,
Ou o buraco de uma fechadura.
Foi-se embora todo meu encanto de criança.
Com o tempo foi-se o Papai Noel, foi-se a Fada do Dente,
O Coelhinho da Páscoa e... A esperança.
A gente cresce iludido e pensa
Que ser maduro é se deixar invadir pela descrença.
De fato, o ingênuo, aqui, não dura muito
E, se durar, é apenas caso fortuito.
Hoje já adulta e mais consciente,
Olho para o mundo
Percebendo o meu redor.
Tá tudo tão feio, egoísta e imundo
Que imagino que seria melhor
Para o bem do amor, da ciência
E também para mim
Ter continuado a acreditar na existência
Daquele franzino pinguim.